Tramas, Rituais e Resistências

A construção da narrativa curatorial que a Christal Galeria de Artes apresenta para a III edição da Feira ART*PE 2024 percorreu a escolha de artistas que carregam em suas poéticas, mas também em seus corpos e em suas existências, questões ligadas ao tema da representatividade e resistência dos povos originários, afro-diaspóricos e LGBTQIAPN+, seja reunindo criadores/as indígenas, negros/as e trans, seja por meio da reunião de criações visuais que em seu tecido tramam, tecem e narram as fabulações de um imaginário cósmico, popular e poético. 

Dito isso, ainda é imperativo dizer que as escolhas dos trabalhos se deram por meio das implicações visuais entre si, diálogos e conexões. Através da presença de relevantes grafismos que conectam alguns deles, atravessando uma fronteira tênue entre essas representações que suportam os grafismos geométricos presentes nas obras de Marcella Vasconcelos e Arbos somados a força simbólica do ritual manifestado nas duas obras de Ziel Karapotó, “Início do Ritual” e ‘Foto performance”. Cada um/a dos/a artistas com investigações e pesquisas que fabulam experiências e saberes de processos criativos atravessados por referências que requalificam a passagem do tempo (tradições), o sagrado, o imaginário e as criações dos povos originários no fluxo do tempo.  

Adentramos a produção pictórica, extremamente recorrente no campo das artes, onde a figuração humana – sobremaneira a representação da pessoa negra - ganha o primeiro plano e torna-se assunto principal, nos deparamos com trabalhos de Íldma Lima. A artista apresenta duas obras que fizeram parte da exposição intitulada “Negras Cabeças”, cuja abordagem assenta a conexão com tradições ancestrais de práticas culturais de mulheres pertencentes a diversos grupos étnicos do continente africano que utilizam penteados e adornos de cabeça como signos de linguagem. Simbolicamente, esses adornos/penteados adquirem sentidos de lugar de pertencimento social, escancaram relações de poder e posições de hierarquias sociais em seu meio, entre outros aspectos.

Na ampliação visual desse conjunto de pinturas entram os trabalhos da artista Bianca Foratori que tece, por meio de uma pintura narrativa de uma delicadeza e profusão de detalhes, histórias de mulheres negras em seus cotidianos, abordando processos de intersecção entre memórias afetivas e tradições, com foco na sociabilidade promovida pelos encontros, pelos modos de trabalhar e pelos afetos trocados entre elas nos espaços da casa. A esse conjunto pictórico com ênfase na narrativa dos cotidianos e modos de vida soma-se o trabalho de Whittney de Araújo e Max Motta, artistas que produziram no marco da experiência do Projeto de Residência Artística Territórios Pina. Nesse espaço dedicado aos artistas residentes do projeto (edição I), junta-se os trabalhos de Liz Santos e Mitsy Queiroz (fotografia). O trabalho do artista Mitsy Queiroz abre diálogo com as obras de Ziel, pela sua força simbólica e sagrada. 

Adentremos os trabalhos das artistas Brenda Bazante e Alícia Cohim. Ambas as artistas trazem em suas poéticas, cada uma a seu modo e por linguagens diferenciadas, uma discussão sobre vidas e corpos deslocados da normatividade. Brenda Bazante, artista, ativista, pesquisadora e cabeleireira, denuncia as vidas trans precarizadas em uma sociedade/mundo intolerante e patriarcal. Se utiliza do bordado na junção com o concreto para a construção de uma tessitura que nos implica na sociedade contemporânea e insiste na fabricação do fascismo. Alícia Cohim, com delicadeza, apresenta dois trabalhos fotográficos, com escrita de si, onde incorpora fragmentos da natureza, chamando atenção para esse corpo/natureza intrínseco à própria natureza. Um corpo como lugar que não podemos escapar, como anunciado por Michel Foucault (2013). Um corpo que se faz corpo ao encolher-se em si mesmo em um abraço de corpo todo. 

Não que ele me paralise - pois, afinal, posso não apenas mover-me e remover-me, como posso também "movê-lo", removê-lo, mudá-lo de localização, apenas isto: não posso deslocar-me sem ele; não posso deixá-lo lá onde ele está. Para ir a outro lugar. Posso até ir ao fim do mundo, posso, de manhã, sob as cobertas, encolher-me, fazer-me tão pequeno quanto possível, posso deixar-me derreter na praia, sob o sol, e ele estará sempre comigo onde eu estiver. Está aqui, irreparavelmente, jamais em outro lugar. Meu corpo e o contrário de uma utopia, e o que jamais se encontra sob outro céu, lugar absoluto, pequeno fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo. 

Fechamos esse percurso expositivo com o trabalho histórico do artista José Barbosa durante a década de 1970, em meio à propaganda do governo militar de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) que criou o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Tal expressão foi inspirada na propaganda americana veiculada durante o período da guerra do Vietnã, adaptada ao Brasil durante esse período. Em 1970, a ditadura reforçou o ufanismo e o patriotismo ao celebrar a vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo realizada naquele ano. Neste sentido, passaram a ser veiculados em muitos meios de propaganda slogans como “Este é um país que vai pra frente”, “Ninguém segura esse país e o próprio “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Frente a isso, o artista criou o trabalho intitulado, Brasil ame-o ou deixe-o, 1978, construindo uma narrativa pictórica cuja presença de uma grande esfera e, em seu centro, a imagem do mapa do território brasileiro é sustentado por um corpo social, mitológico, político e erótico. 

Com base nessa linha de uma produção artística que faz citação crítica política, trouxemos para dialogar com José Barbosa, o jovem artista Tássio Melo, que constrói – com base nos debates do presente sobre imposições e desigualdades sociais, sobre intolerância religiosa cristã e desequilíbrios naturais - outra narrativa acerca desse corpo social nacional que, a seu ver, está fora/dentro do prumo. Intitulado de Nivelando por Baixo, esse objeto aponta para uma poética de crítica social, composto por material e instrumento de trabalho da construção civil e textos recortados de folha da Bíblia Cristã.

Entendemos que ao reunir esses trabalhos, construímos espaços de vizinhanças entre eles, que se apresentam a partir de múltiplas conexões possíveis, atravessadas por similitudes entre as linguagens adotadas, por poéticas assumidas, por questões tematizadas e pelas urgências que cada uma delas carrega.  

Joana D'Arc Lima

Artistas participantes da Exposição “Tramas, Rituais e Resistência”:

Adalgisa Campos, Adeildo Leite, Alícia Cohim, Arbos, Bianca Foratori, Brenda Bazante, Íldima Lima, José Barbosa, Liz Santos, Marcella Vasconcelos, Max Motta, Mitsy Queiroz, Tássio Melo, Whittney de Araújo, Ziel Karapotó.