Territórios Pina: Dois Olhares que Se Entrelaçam
A arte traz uma sensibilidade que anima a vida e redefine desmantelos. Foge de padrões, coloca desafios, amplia a imaginação. Ela expressa sentimentos que se achavam escondidos, surpreende os conformistas, nos mostra a complexidade e beleza [horrores] do mundo. Suas narrativas multiplicam interpretações, retomam significados, aparentemente, sepultados, individualizam questões. Tiram-nos de uma objetividade cansada de apatias e desconsolos. É importante não esquecer que os jogos do mercado não destruíram suas ousadias, nem desfizeram sua capacidade de dialogar, de desmanchar as apatias. (A.P. Rezende).
A exposição de pinturas que ora estamos diante, intitulada por Territórios Pina, apresenta dois olhares que se entrelaçam e se distanciam na elaboração da fatura pictórica, de dois artistas Max Motta e Whittney de Araújo, para o mesmo território - o território Pina, no qual a Christal Galeria habita. Parte dos trabalhos exibidos nessa mostra é resultado da pesquisa de Max Motta e Whittney de Araújo, convidado/a pela Christal para participarem, como artistas residentes, da II Edição da Residência Artística Territórios Pina (2024), que nessa edição desejou fortalecer e fomentar a produção de jovens artistas já representados pela Galeria, além de abrir a oportunidade para uma jovem curadora, Eduarda Oliveira, acompanhar, em caráter de curadora assistente, o processo da residência junto com o grupo de artistas.
Quando imaginamos um território pensamos também em suas demarcações, limites e fronteiras, a rigor organizadas por relações de poder. Um território, ademais de ser representado por mapas e plantas, possui modos e hábitos de vida que nos ajudam a identificá-lo e percebê-lo, muitas vezes com limites que não estão visíveis aos olhos. É preciso pertencimento. Dessa forma, um território é um espelho mais ou menos nítido do que é uma comunidade - um dos perigos que encaramos na atualidade é a perda do sentimento de comunidade (Hooks, 2021). E as pessoas que fazem parte dessa comunidade também ressoam no território, sendo capazes de levá-lo para onde forem.
A Christal Galeria está situada no Pina, território com muitas histórias e memórias de resistências e lutas em torno da defesa do direito de permanecer em suas casas – frente à especulação violenta dos grandes empreendedores imobiliários -, do direito à cidade, à moradia e ao trabalho, muitas vezes na pesca. Essas histórias são entrelaçadas com as histórias e memórias das festas de rua, as festas religiosas, entre tantas histórias afetivas, se configurando como práticas e poéticas da sociabilidade, que mobilizam centenas de pessoas do território, unindo-as e fortalecendo o sentimento de pertencimento à essa comunidade imaginária e a esse lugar.
Max e Whittney foram convidados/as a adentrar, com respeito, no território Pina, acompanhados pela artivista Tab, que atua e reside no Pina. O caminhar, segundo o artista Moisés Patrício, também é uma prática estética, neste sentido, tomamos esse gesto como uma metodologia de criação e instigação para Max e Whittney, como um ritual e um gesto performático. As caminhadas permitiram deslocamentos, exteriores e interiores, e igualmente permitiram apropriações, incorporações de saberes, gestos, olhares, maneiras de viver, que foram trazidas e absorvidas por meio das caminhadas em suas vivências.
Fizeram da caminhada o método de reconhecimento do lugar, afinaram a escuta para as histórias de moradores/as e essas, armazenadas na memória, se tornaram combustível para a criação de imagens pictóricas. Observaram os movimentos dos corpos nos espaços sociais, flagraram olhares distantes e indagadores e observaram os modos de viver, de trabalhar e de lazer. Sentiram os cheiros, odores e o barulho do mar junto com os ruídos das pessoas na praia, no Buraco da Véia.
Com efeito, ambos artistas, que usam a linguagem pictórica figurativa como modo de expressão, construíram uma cartografia visual não oficial do e sobre o Pina, que ora temos a honra de apresentar nesta exposição. Seus olhares se entrecruzam e se distanciam, revelando a multiplicidade, tanto do modo de olhar para o mesmo objeto, quanto do modo de reapresentar o real. Cada um/a a seu modo investigativo -, de construir pictoricamente as narrativas visuais que ficaram presas à memória, que escutaram, ou ainda, aquelas registradas em fotografias capturadas durante as expedições pelo Pina -, trilhou caminhos de representação diferenciados. Os temas se aproximam, o uso da figuração também, entretanto, a maneira de representar pictoricamente é distinta.
Max Motta, com mais tempo de experiência - em relação à Whittney de Araújo -na produção em grande formato, pintura mural, e, mais recentemente na pintura em tela -, desenvolveu sob a perspectiva do realismo ou hiper realismo como sugere o artista -, um conjunto de retratos, seu interesse pela figura humana é um traço relevante em sua pesquisa, além, de criar cenas de convívio social, extremamente ricas em detalhes e figuras em movimento. Um toque de humor acompanha alguns dos trabalhos, todavia os perrengues da vida estão latentes na expressão dos olhos, a expressão dos sentimentos que se achavam escondidos. No conjunto de suas pinturas, somos observados por alguns de seus personagens que nos vêm, compartilhando a cena e o espaço pictórico.
Ao longo da residência Max Motta foi desenvolvendo interesse, por meio de pesquisas e estudos, sobre a pintura de artistas como Caravaggio, Rembrandt, Roberto Ploeg, por exemplo, isso trouxe um grande desafio ao artista, em relação ao apuro técnico da fatura pictórica, da temática, dos modos de resolver dados impasses no trabalho e os usos de uma paleta de cor utilizadas pelos artistas citados. Parte destes aprendizados, podemos ver presentes nesse conjunto de trabalhos criados no âmbito da II Residência Territórios Pina.
Whittney de Araújo iniciou sua trajetória artística bem recentemente. Ela é muito jovem, apenas 22 anos, esse dado diz de suas inquietações e experimentações com a pintura. De maneira sumária Whittney trabalha com a figuração e a utilização de uma paleta de cor em escala bastante variada. Usa a cor conforme deseja dar intensidade de veracidade do real ao seu trabalho. É uma artista que se vale de arquivos e acervos de imagens em seu processo criativo e ainda utiliza da observação in loco para suas composições visuais. Fragmentos da cidade do Recife/PE, cenas de rua, cenas de salões de cabeleireira estão no horizonte maior de seu interesse, uma história do cotidiano, trazidos para suas narrativas.
Nesse conjunto de trabalhos que Whittney de Araújo criou para a exposição na Christal Galeria, podemos notar parte de seus interesses novamente se presentificando nessas pinturas. Aqui, segundo a artista, parte do repertório revelado foram transpostos pela sua memória após o convívio com o território: o que ouviu atentamente de uma moradora do Pina que a levou ao alto da casa, para que olhasse o bairro e observasse o conjunto de prédios que sufocam e ameaçam a permanência da comunidade em suas casas. A tensão, o drama, a denúncia e a luta pelo direito à moradia se explicita e se exemplifica em uma das obras apresentadas por Whittney de Araújo na exposição.
A artista brinca com alguns elementos que compõem suas cenas do Pina, ora a flor de Lótus aparece como a possibilidade de esperançar diante da ocupação violenta das construtoras, ora apresenta um recorte poético da praia do Pina, à semelhança de um pequeno campo de conchas a ser percorrido por nós, ora por meio de um close-up transforma uma escadaria que possivelmente nos leva a algum lugar ou a um segundo andar de uma das casas do território e a transforma numa escadaria da felicidade, inserindo campos semânticos positivos. Ainda nos convida para uma cena de rua, ludicamente ocupada por um jogo de futebol. Entre o real e o ficcional por onde caminha a artista, inclusive no modo de apresentação da figura humana, diferentemente de Max Motta, Whittney de Araújo reinventa cenas do Pina, entre a denúncia e a aposta no bem viver.
Somos todos/as/es aprendizes, assim nosso desejo com a II Edição da Residência Artística Territórios Pina foi o de criar situações que possibilitaram as conversas, as escutas, a produção de conhecimento, a reflexão, a troca, as movências por entre territórios, seja o Pina, seja os ateliês da UFPE, seja ainda o ateliê do artista Roberto Ploeg, em Ouro Preto Olinda, que visitamos e provocou em nós muitas movências e aprendizados, um território de afeto, de amor, de práticas sociais, de saberes, de produção e exibição da obra desse artista, um território ecológico. O projeto Residência Artística Territórios Pina suspende certezas, aposta nos riscos, investe no devir e acredita na fundação de espaços de conversas e diálogos. Eis nessa exposição parte dos resultados destas apostas traduzidos por Max Motta e Whittney de Araújo, dois aprendizes que nos ensinam a olhar para o território Pina.
Joana D'Arc Lima
Visitação: 28 de maio a 24 de julho de 2024